Ele já demonstrou disposição em negociar e, a esta altura, seu fracasso é o pior que poderia acontecer ao país

Javier Milei venceu a eleição argentina em novembro com vantagem de 11,4 pontos percentuais sobre o peronista Sergio Massa. Ficou em primeiro lugar em 20 das 23 províncias. Nesta semana, os perdedores — peronistas, em especial da variante kirchnerista, sindicalistas e movimentos sociais — promoveram a primeira greve geral contra os planos do novo presidente. Seria uma lástima se a pressão das ruas resultasse em paralisia nas mudanças necessárias para resgatar o país do fundo do poço. A esta altura, o fracasso de Milei é o pior que poderia acontecer à Argentina.
Antes do fim do ano, Milei anunciou um pacote com mais de 300 medidas para desregulamentar a economia, conhecido como “decretaço”, e enviou ao Congresso a Lei de Bases e Pontos de Partida para a Liberdade dos Argentinos, com 664 artigos e 351 páginas, apelidada “Lei Ônibus”. Mesmo antes da greve, ele dava sinais de estar disposto a recuar em pontos controversos para aprovar as medidas no Congresso.
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Ao todo, Milei excluiu 141 artigos da Lei Ônibus, que está na Câmara e precisará ar pelo Senado. Retirou da lista de estatais a ser privatizadas a petrolífera YPF. Anunciou o fim do congelamento de aposentadorias, que voltarão a ser corrigidas trimestralmente. E reduziu de quatro para até dois anos o período em que pretende governar por decreto. É verdade que a amplitude da lei ainda permanece exagerada e que o recurso ao governo por decreto deve ser medida excepcionalíssima em toda democracia. Mesmo assim, ele demonstrou disposição em negociar.
É o preço que ele paga por ter sido eleito sem base parlamentar sólida. Seu partido, A Liberdade Avança, elegeu 37 dos 257 deputados e sete dos 72 senadores. Firmou alianças com forças de centro-direita e conta com apoio de alguns peronistas e parlamentares de outras legendas. Mas precisará ainda negociar muito — e deveria ceder ainda mais na ambição do que pretende alcançar. Além de desistir de governar por decreto, é preciso recuar no autoritário “protocolo contra protestos”, medidas contra manifestações de rua que incluem proibição de piquetes, cobrança aos organizadores dos protestos do custo de mobilização das forças policiais e até a cassação de benefícios sociais de manifestantes presos.
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Milei foi catapultado à Casa Rosada por votação maciça contra o peronismo. Sua vitória foi uma resposta desesperada dos argentinos à inépcia de sucessivos governos em debelar a crise econômica endêmica e reverter o empobrecimento crescente. Apesar de seu estilo histriônico, seu pacote se baseia no diagnóstico correto de que o Estado argentino precisa rever gastos e adequá-los à capacidade da sociedade de pagar impostos. Do contrário, a inflação continuará a ajustar as contas da pior maneira. Em vez de enfrentar suas limitações com vigor, a Argentina procura há décadas fugir da realidade. Milei dá a entender ter noção do caminho a percorrer num ajuste necessariamente impopular. Quanto mais o país adiar medidas que o levem a viver dentro de suas possibilidades, mais doloroso será o acerto de contas.