Estrangulada por milícias, a Hollywood brasileira lembra a violência dos primórdios da artista na metrópole americana
Fotografia de Steven Klein para ensaio com Madonna na V Magazine Reprodução
E isso é desastroso para artistas de agora, que só podem sonhar com a sensação eletrizante de uma cidade idem, um lugar que então se reconstruía sobre os alicerces plantados por gente como Madonna. Eram loucos, delirantes, mentes e corpos que não cabiam em rótulos, malucos expansivos que chacoalharam a rígida geografia ortogonal das ruas esquadrinhadas a régua de Manhattan.
No endereço do Chelsea onde antes ficava a Fun House, hoje existe uma galeria de arte, a Paula Cooper. Todo o bairro, aliás, deixou de ser a paisagem cinzenta atravessada por ramais ferroviários que terminavam na zona dos abatedouros, açougues e curtumes, o Meatpacking District, para se transformar no epicentro do mercado de arte global.
Todas as casas mais poderosas do mundo ocupam esse pedaço no oeste da ilha e, mais ao sul, está o imponente Whitney, um dos maiores museus nova-iorquinos, rodeado agora de butiques reluzentes, algumas das lojas mais caras do planeta.
Tudo está muito longe da fuligem do underground. É o avesso daquela decadência libidinosa e grudenta que costuma ser o caldo de onde nascem verdadeiros artistas.
Mesmo o East Village, onde Madonna aportou vinda do interior do estado de Michigan e fez sua primeira morada oficial em Nova York, hoje é um reduto bem comportado de estudantes, a maioria herdeiros bem-nascidos, que estudam coisas criativas na Universidade de Nova York, e velhos boêmios que se contentam com uma boêmia refreada de agora, festas com hora marcada para acabar, bares e restaurantes com preços estratosféricos nos cardápios.
São também os lugares que estruturam clássicos de seu repertório. “Vogue”, talvez o maior hino de sua discografia, não existiria sem a cena “ballroom” do Harlem, bairro então dos negros e dos latinos que foi um universo riquíssimo para ela, dos os de dança à energia feérica da noite.
Mesmo décadas depois, Madonna celebraria o mesmo lugar no clássico álbum “Bedtime Stories” —o clipe de “Secret”, em que a cantora veste um casaco de pele e tem o pescoço cheio de correntes de ouro, é uma ode a essa vibe ancestral da cidade que já foi o motor estético do mundo.
Um momento importante na biografia da artista, aliás, aconteceu na pista da finada Danceteria. Quando Madonna já estava no elenco de “Procura-se Susan Desesperadamente”, por um desses acasos felizes de uma época que permitia acasos felizes distante da esterilidade das redes sociais, foi ali que rodaram uma cena de boate no filme.
A trilha sonora estava no bolso da cantora, a fita cassete com “Into the Groove”, que acabou entrando para a trilha oficial do longa —essa é outra das canções clássicas que a diva deve cantar para 1,5 milhão de pessoas agora nas areias de Copacabana.
Há, no entanto, uma ausência notável, sinal dos tempos talvez. No fervo de quatro décadas atrás, Madonna compôs “I Love New York”, um lado B gravado muito tempo depois, neste milênio, que vez ou outra invade uma setlist da cantora. É uma declaração de amor àquela Nova York de então, hoje sepultada pelo poder avassalador do dinheiro, de oligarcas e suas “penthouses”, uma cidade vítima do próprio fetiche, tão sexy que se tornou mumificada, playground de super-ricos inível para os mortais que são os artistas no início de tudo.
Nos versos, Madonna diz não gostar de cidades, a não ser Nova York. Los Angeles é para quem morre de sono, Londres e Paris não importam. Se você não aguenta o calor, ou o tranco mesmo, melhor cair fora. Seu coração só tem lugar para Nova York.
Madonna, que sobe ao palco no Rio de Janeiro numa onda de calor recorde para nosso outono tórrido, hoje mora no Upper East Side nova-iorquino, um bairro tão chique quanto chato. Ela está em outra, mas é certo de que se lembra do começo de tudo, o que talvez faça o distrito das madames e dos poodles ser também a sua casa, o lugar da dona da porra toda.